Carolina Medeiros
2 min readMar 15, 2021

Do meio-fio nasce um sol dourado.
Enfio a mão no bolso e um fio
de cabelo é o que eu guardei de você.
Resto e recordação,
relíquia do seu corpo quente, teso, rijo,
composto de massa firme e densa
como o corpo de um grande bebê forte que grita
faminto do meu sexo.
Corpo de pelos esparsos,
exceto na cabeça e no rosto, onde proliferavam abundantes,
brilhavam, negros, desenhando uma masculinidade que eu queria pra mim.
Na cabeça, uma temperatura morna e duas orelhas de lóbulos carnudos
feitos para minha boca morder.
Braços duros que acabavam em mãos gordas, macias, com as pontas dos [dedos
muito finas que me seguravam em tímidas carícias,
automáticos carinhos, curtos e suaves cadenciando o ritmo do desejo.
Sua pele estratigráfica, úmida,
sedimentada em camadas sobrepostas de vapor do verão que nunca acaba.
Inspirar seu cheiro acre era uma forma de absorver tudo o que não sou.
Lavar seu corpo, limpar toda a superfície que te envolve
me redimia de um erro primordial.

Não conseguimos, querido. Vou sair agora.

A sarjeta me conforta na manhã dourada, cor-de-rosa , alcoólica,
volátil, evaporando o peso do seu corpo que ainda está em mim.
Eu no meio-fio e o fio
de cabelo que guardei como se fosse um tesouro.
Um item de arquivo para minha inexistente coleção de artefatos de amantes,
o catálogo imaginário de sobras dos amores.
Com cuidado acomodo o fio
dentro do maço de cigarros,
junto ao último sobrevivente amassado.
Olhando o céu me encontro no espaço entre
humano, animal, coisa e deus;
num corpo em calafrios,
espasmos marcando o retorno de uma sensibilidade
anestesiada, exatamente por ser demasiada.

(março de 2021)