Carolina Medeiros
2 min readMar 17, 2021

Os olhos dela estão calmos atrás dos óculos. São pequenos e, mesmo tão jovens, já sentem o peso das pálpebras. Olhos, óculos, moldura, janela, paisagem. Olhos claros, verdes, enevoados, envoltos numa atmosfera de gases voláteis e poeira cósmica, um céu verde de nebulosas. Os olhos na fotografia estão num estado raro de plenitude, em um fim de tarde de sol, após um almoço longo e demorado. Um dia inteiro na cozinha, um dia inteiro de música na vitrola, entre temperos, panelas, beijos e copos de cerveja. Os cabelos curtos em cachos castanhos, a força dos fios jovens e brilhantes. A beleza simples que só a alegria genuína de um amor produz. O sorriso hesitante que se abre no momento do disparo da câmera. Ele, através da lente, olhava a mulher com um amor distante e ela o olhava de volta com a mais honesta ternura, já saindo de quadro.

Um homem e uma mulher que se amaram um dia e, em segredo, sabiam da finitude das coisas.

Ele sentia o cheiro doce, único e inconfundível, via a doçura no movimento dos braços, no jeito de se mover como se estivesse dançando lentamente. A leveza nos gestos, a mansidão na voz cantada, seu incógnito humor e seu hálito espesso.

Os olhos dela eram também dois poços fundos, daqueles que emanam um frescor num dia de calor. Dois poços que continham uma água translúcida de lágrimas. Ela sabia que ele penetrava seus olhos com a câmera e, pela primeira vez, ela não tentava esconder nada. Obturador da câmera que dispara o gatilho.

Ela havia lhe contado toda a sua história naquele dia, contou-lhe sobre sua infância rígida, sua juventude difícil, a morte da mãe, o abandono do pai. O desamparo se revelava em seus olhos. Neles a tristeza se mostrava sem que ela soubesse, denunciada em seu corpo frágil, em sua pele fina de papel de seda, em sua boca soprando a fumaça do cigarro. Muitos cigarros ela fumou naquela tarde. Os cinzeiros cheios espalhados pela casa, os pulmões cheios de fumaça, as guimbas sugadas até o fim.

Ele, ele não contou nenhuma história nem confessou nenhum sentimento guardado.

Depois de muito tempo em silêncio voltaram a falar algumas palavras. Estavam agora na varanda da frente vendo a chuva cair. A chuva era de gotas gordas, pesadas, grandes. Foi apenas sobre a chuva que conseguiram falar depois das revelações que ela havia feito. Nada mais conseguia ser dito. O chão lá fora tinha a terra encharcada, formando poças de uma lama vermelha e barrenta. O ar imóvel, estático, sem vento algum. Era como se os dois estivessem suspensos, presos numa teia de aranha, tecelã das horas e minutos, enquanto o tempo ia brotando das nascentes daqueles olhos e se acumulando nas poças, prevendo a separação.

(setembro de 2020)