Carolina Medeiros
2 min readFeb 20, 2021

Instauração
(Sobre As existências mínimas de David Lapoujade)

Instaurar uma ideia, instaurar uma dança no escuro da sala, instaurar um rabisco no meu caderno pautado, querendo guardar seu rosto de perfil. Instaurar um novo amor, instaurar uma sopa gelada de beterraba, instaurar uma só nota cantada ao infinito para estender minha voz no espaço.

A instauração é gestar e parir a existência de algo que ganha vida própria. Todos somos capazes disso. E tudo passa a existir quando eu instauro a vida das coisas. Um pequeno instante marca a inauguração dessas coisas mínimas, seja com confete e serpentina imaginários, seja com uma dor muito forte no fundo do peito.
Tem as coisas mínimas que nascem no momento em que as criamos e tem as que simplesmente as percebemos no mundo e as organizamos. Estas apenas deixamos existir, sem interferir em nada que as constitui. Gesto raro, mas presente.

Sobre as coisas mínimas Lapoujade diz:
“Temos sempre que defender o sutil contra o grosseiro, os planos de fundo contra o ruído do primeiro plano, o raro contra o banal, cujo modo de conhecimento tem como correlato a mais espessa ignorância.”

E como instaurar-me a mim mesma?
Quando duvido de mim mesma estou suprimindo minha existência.
Torno-me fantasma, torno-me ausente. Procuro onde me pousa a sutileza para instaurar minha própria existência.
Estou mesmo aqui? Quem é esta mulher de costas na cozinha que chora cortando cebola?

“O sabor e o odor característicos da cebola são oriundos de compostos de enxofre voláteis, liberados no corte ou na ocorrência de qualquer injúria ao tecido da cebola. A volatização do composto de enxofre gera ácido pirúvico. A pungência, mais que a doçura, determina se o sabor da cebola é doce ou picante. A determinação do desenvolvimento do ácido pirúvico é o método utilizado para a medida da pungência da cebola.” É o que diz a cartilha do Ceagesp que a mulher desocupada pesquisou na internet.
Pungência. Enxofre. E assim instauro minhas lágrimas, organizo as rodelas de cebola cada vez mais finas, formando mandalas de películas picantes, ardentes, instaurando um almoço atrasado.

Volto a Lapoujade: ”Tudo se resume a isso: tornar-se real. E tornar-se real é tornar-se legítimo, é ver sua existência corroborada, consolidada, sustentada no próprio ser.”

Quando fecho os olhos, segurando firme a faca na mão direita e vejo a mim mesma de costas na cozinha, sou testemunha de minha própria existência. Quero tornar-me real.
Quando escrevo qualquer bobagem ou bordo uma linha torta estou, além de instaurando a mim mesma, dando vida às existências virtuais que sobrevoam meu corpo. Minha cabeça é meu corpo. E existências que flutuam em minha corrente sanguínea são geradas quando enfio a agulha no tecido e furo a ponta do meu dedo.
Mas e quando minhas mãos não produzem nada? Existo um pouco menos por isso?
E quando percebo que não vou instaurar nada por dias e dias, vivendo em dias alongados como hoje, não parir essas existências me torna estéril de vida própria?

(janeiro de 2021)