Carolina Medeiros
2 min readFeb 5, 2021

Existe uma coisa chamada Espaço da Ausência. É o lugar onde ela se faz presente. Um não-lugar, um buraco, uma falta. O Que-Ainda-Não-Foi demarcando o território da Possibilidade-Do-Vir-A-Ser. Como pode algo que não existe existir tanto assim? Pois existe. Dentro da fronha do meu travesseiro, dentro da barriga, entre as costelas, atrás do umbigo, caído atrás do velho estofado do sofá, esquecido dentro de um livro, no ponto central da nuca onde nascem os fios de cabelo. Apenas existe.

O Espaço da Ausência está na distância de um oceano, no mar onde nossas cartas navegam em forma de barquinhos de papel, num sorriso no retrato, na capa rabiscada do disco de vinil, no peso da sua história, nos mitos falsos entre goles de cerveja, nos fatos que me contaram. Tento lembrar de algum momento chave, algum sábado de sol tomando banho de mangueira em sua casa, alguma carta recebida no inverno afastado e gelado, algum café da manhã de domingo em frente a televisão, alguma despedida através da janela.

Tento lembrar dos teus olhos, não consigo. Dos teus olhos só me sinto longe, tão longe que não sei mais a cor que eles têm. (E algum dia soube?) Os meus olhos eu vejo todos os dias. Vejo-os no espelho do banheiro, embaçados pelo vapor, meus olhos de jabuticaba. Era assim que você dizia: “olhos de jabuticaba”. Sim, você dizia que eu tinha olhos de jabuticaba. Era você mesmo? Ou alguém me contou uma fábula, um conto, uma mentira? Pensei em perguntar a alguém da família, jamais a você. A você, nunca. Pensei em ligar para minha mãe, ela deve saber. Desisti. Pensei em buscar nas cartas amareladas, decifrar a sua letra torta, pensei na sua mão jovem e forte escrevendo as palavras: “olhos de jabuticaba”. Como estão suas mãos hoje? Enrugadas, trêmulas, velhas e manchadas?

Não sei se o que escrevo é lembrança ou invenção, realidade ou imaginação, pensamento ou experiência. Simplesmente porque não guardo as coisas como verdades concretas, essas coisas se guardam por si só, não tenho domínio sobre elas. Essas coisas ficam em silêncio, esperando eu chamá-las pelo nome. Não sei como chamá-las. Minha história, meu passado, minha memória? Meu currículo tem falhas, não condiz com os acontecimentos. Meus vestígios soltos se escondem, ninguém vê; ocultos, perderam-se no tempo. Eu não existo no Google. Eu já me procurei. Eu só existo aqui, presente, e você não vai me achar. You’ll never have me. Não tenho velhos brinquedos nem álbuns de fotografia. Tenho dúvidas se eu existi algum dia. Só meus fragmentos me sustentam e me moldo nos cacos que catei pelo caminho.

Escrevo jogando no mar um colete salva-vidas, escrevo como operação de resgate. Escrevo puxando com esforço a corda pra fora do poço, escrevo seguindo as pegadas apagadas na trilha. O que escrevo precisa de salvação. O que escrevo parece não existir, mesmo quando sinto intensamente o absurdo dessa existência. O que escrevo é esquecimento que se recusa a permanecer submerso no Espaço da Ausência. E isso importa? É outubro e está na época de jabuticaba.

(outubro de 2020)